quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Eu sou nublado, eu sou saudade, sou os olhares cruzados, o tiroteio de nossas vidas-fábulas, sem causar máculas, sem fazer alarde.
Estas minhas pálpebras serão decoradas com orvalhos doces e cirúrgicos, com o esmero prateado da minha memória e de seus amarantos laços, pois no decorrer da pouca vida, em nenhum instante me fiei ao gume da mentira, nem pousei minha face ao azedume do cansaço. Não me cessei, não me contive, não me neguei. Chovi, garoei, desmoronei. Fiz o que fiz e sorri. Também chorei, também parti, também fiquei. A dor da perda fora como tantas migalhas que deixei cair, ao alimentar o tempo de boca pequena, fome desgovernada e mandíbulas trêmulas. A saudade foi ficando, impregnando, fazendo parte, fazendo morada. Ficou como tatuagem acompanhando minhas noites calmas, minhas manhãs curtas, minhas madrugadas floridas, minhas tardes desafinadas... mas sempre fez parte do que sou. Ela ficou como sempre quis que você também ficasse, meu amor. Ela ficou e me ensinou as estações de sua ausência, as matrizes infinitas da poesia, a calma e a culpa do coração. Ela ficou e me ensinou também a beleza da cafeína, da nicotina, das camomilas... me ensinou que a paz não é um telhado pra se esconder do céu se nublado de exaspero. Paz é carta manuscrita que chega para nos alegrar o dia. Paz é plenitude repente, de vez em quando, cadente, que às vezes nos vê de janela fechada e nem nos sobe à calçada pra gritar por nós. Paz é rua sem saída que encontramos sem querer, quando tudo o que queremos é ter por onde passar, por onde ser notado, sentido, talvez até odiado. A paz não é o branco, não é o azul. Paz é quando deixamos de querer pintar nossas ternuras e passamos a cultivar flores nas feridas, regar e podar suas ramas, pra que olhe em volta e se torne primavera. Foi o que aprendi com a saudade... nos tornamos flor por não ter quem nos floreje. Saudade é singular na tristeza, na carícia, nos suspenses cardíacos... somos canteiros férteis que aguardam penosamente por quem nos semeie borboletas e tintas distintas, mendigando primaveras pelas perpétuas pétalas da insônia. E você nunca veio pra me compensar os espinhos de meus versos, nem da embriaguez de meus vinhos tintos. E me tornei o que sou. Cinzas e só.
Ser saudade é ficar com tudo aquilo que nunca se soube ficar.

— Annd Yawk 


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